quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Sobre o trabalho com as massas




Trabalhamos com a idéia de que não há socialismo sem revolução, e não há revolução sem crescimento exponencial da luta de massas no país. Mas como orientar, quando necessário, as massas para seu destino revolucionário?
Consideramos massas os conjuntos de trabalhadores e elementos populares que convivem numa determinada coletividade, normalmente altamente heterogênea em termos de valores, crenças políticas e comportamentos. Em outras palavras, não consideramos as massas populares ou trabalhadoras um conjunto uniforme, mesmo que pertencentes à mesma classe ou segmento social. Massa é muita gente, é multidão. As massas nada têm a ver com passividade, gente manipulável e dependente. As massas são vivas, às vezes explosivas, possuidoras de memória, consciência, projetos e decisões.
Claro que nem sempre as massas são assim. Pode-se encontrar massas de todo o tipo: ingênua ou consciente, passiva ou ativa, solta ou coesa, conservadora ou inventiva. Mesmo dentro da massa do povo é possível encontrar as correntes mais diversificadas: participantes e curiosos, exaltados e conformados, a turma do “bota pra quebrar” e a turma do “deixa disso”. O que importa enfatizar é que a massa possui dentro dela um potencial de força, de esperança, de vida e de criação que é preciso valorizar e desenvolver.
          A dinâmica de aprendizado e desenvolvimento das massas é dispersa e diferenciada, em virtude de suas próprias condições de trabalho e de vida. Além disso, disperso e diferenciado é também seu conhecimento sobre a realidade econômica, social, cultural e política, na qual essas massas estão inseridas. Afora o fato de possuírem baixa instrução escolar, elas são ainda bombardeadas intensamente por informações que, em geral, procuram mistificar e embaralhar a realidade.
         Nessas condições, a escola de aprendizado das massas, onde quer que estejam, num chão de fábrica, numa ocupação urbana, numa vila rural, ou em qualquer outro tipo de coletividade, só pode ser a prática da luta, seja pela sobrevivência, seja pela conquista de direitos. É na luta que elas descobrem seus próprios problemas, ou os aspectos negativos de sua existência. É na luta que elas começam negando aqueles aspectos negativos, como passo necessário para aprender a apresentar propostas positivas e ganhar coragem para lutar e vencer.
É na luta de negação dos aspectos negativos de sua vida, seja a pouca comida do dia-a-dia, o pouco teto para se proteger, a pouca ou nenhuma terra para plantar, o baixo salário para fazer frente aos custos da vida etc. etc., que as massas apreendem a realidade. Mesmo que essa apreensão ainda seja parcial, e um início de busca de soluções, essa é sua dinâmica "normal" de aprendizado.
Por outro lado, a realidade está em constante mutação. Ela é histórica e nada tem de linear. Às vezes, produz fatos e aspectos negativos que fogem daquela "normalidade", rompem com a dinâmica "normal" e obrigam as massas a negações mais radicais. Crises econômicas e sociais, guerras, conflitos políticos etc. são aspectos de grande tensão na realidade. Mudam a vida das massas de forma ainda mais brutal, obrigando-as a buscar soluções impensáveis em tempos "normais".
Os voluntaristas, em geral, desprezam a dinâmica "normal" das massas. Acham que podem chegar, qualquer que seja o momento, e propor soluções próprias para momentos de grande tensão, acreditando que as massas os seguirão, dependendo apenas de capacidade de convencimento. Recusam-se a partir do nível real de aprendizado delas, e da realidade "normal", participando do processo real, às vezes lento, de luta e descoberta de problemas e soluções. Com isso, frustram-se ao tentar impor uma dinâmica que nada tem a ver com a realidade, e para a qual as massas ainda não amadureceram. Culpam aos que procuram adaptar-se à dinâmica "normal", pela suposta inação das massas. E isolam-se atuando como comentaristas estéreis. Assim, quando os momentos de grande tensão se apresentam, não possuem elos de contato com as massas, que lhes permitam influenciar os acontecimentos.
         Já os espontaneístas se subordinam totalmente à dinâmica "normal" das massas. Não vislumbram a possibilidade de saltos, nas descobertas das massas, quanto aos aspectos negativos da realidade, nem na criação de negações que correspondam a essas novas descobertas. Não se preparam para as grandes tensões e, quando estas se apresentam, são atropelados pelos acontecimentos. É preciso lembrar, portanto, que ninguém é capaz de mobilizar as massas para algo além dos que elas pretendam no momento e que um dos aspectos importantes da participação de líderes e militantes dos partidos populares nesse aprendizado "normal" consiste, justamente, em poderem medir essa tendência e contribuir de forma ativa na organização e na mobilização propriamente dita.
         Quando tais líderes e militantes estão presentes, e são ativos, há uma propensão de assumirem a direção das mobilizações. Isto dá a impressão de que se deveu a eles o fato de as massas haverem se mobilizado. No entanto, eles só assumiram a direção porque estavam presentes e porque captaram as razões e os limites da luta. Não é por acaso que, mesmo estando presentes, há lideres e militantes que não conseguem ser reconhecidos como dirigentes. Tentaram impor objetivos e formas de luta mais avançados, ou mais atrasados, por incapacidade de captar as razões e limites a que as massas haviam chegado em seu aprendizado "normal". Os líderes e militantes que possuem consciência das contradições da realidade, como a luta entre as classes e a luta pelo poder, têm importância tanto na organização e decisão, quanto na avaliação da luta, de modo a elevar o aprendizado e a mobilização. Mas, se não levarem em conta o nível real de aprendizado das massas, certamente cometerão erros que os distanciarão dessas massas.
         E o que acontece quando as massas se juntam para alguma manifestação ou ação coletiva?
         Podemos identificar ao menos três processos: 1) fusão numa identidade coletiva: a nação, a classe, o partido, a religião, a religião, o time, etc. Cria-se uma personalidade coletiva ligada a uma Causa; 2) cria-se entre as pessoas uma comunicação de sentimentos, há emoção, intensidade de experiência; 3) há uma tendência para percepções e escolhas na base do tudo ou nada, do isto ou aquilo, do sim ou não. A massa é em geral plebiscitária. Mesmo na sua desconfiança, a massa tende ao oito-ou-oitenta.
         Para aqueles que se envolvem com as massas, costuma se apostar nisto: as massas são quem devem se tornar donas de seu destino. Nosso trabalho supõe a convicção que as massas tem cabeça (consciência, liberdade) e coração (sonhos, projetos, vontade). A aposta de quem trabalha com as massas é que estas podem deixar de ser objeto para ser cada vez mais sujeito, que elas são capazes de aumentar a consciência, a autonomia e a capacidade de iniciativa. E essa é sua vocação profunda, muito clara na perspectiva bíblica – vós que outrora não éreis povo, agora sois o Povo de Deus (1Pd 2, 10). Se não se acreditar nisso, não há menor sentido em trabalhar com a massa do povo. Aqueles que não acreditam nisso e se entregam ao ceticismo são aqueles que entregam o povo nas mãos dos manipuladores de toda espécie. Sabemos que sem a participação das massas é impossível transformar a sociedade de maneira profunda e em favor do próprio povo. A mensagem é clara: a sociedade não se muda sem mexer com as massas.   
         É preciso distinguir também o trabalho de comunidade (de base, em grupos) e o trabalho de massa. No primeiro a reflexão é mais desenvolvida, enquanto que na massa é a emoção que mais conta. Em suma, na comunidade a metodologia é de conscientização, na massa é a sensibilização. Grupo e massa devem estar articulados, um ajudado o outro. Os grupos ativam dinamismos internos à própria massa. Sem a organização em grupos, a massa permanece como que invertebrada e exposta à manipulação dos grandes. Os grupos devem estar na massa como peixes na água.
         É importante se dar conta de que trabalhar com a massa não é só entrar na direção, estar à frente, pegar no microfone. Também é trabalhar em meio ao povo, dinamizando sua participação, suscitando a tomada da palavra, despertando a intervenção.
         O que falar as massas? A regra geral é falar sobretudo das coisas essenciais, das questões vitais. A análise detalhada das coisas e doutrinas se faz em outro momento, não frente às massas. As massas entendem a linguagem do coração, toca-se facilmente por tudo que é “sensacional” e “impressionante”. Toda linguagem de massa deve buscar inflamar, empolgar. Só as massas entusiasmadas participam, se movem e mudam.
         Para as massas, o coração é que manda. Mas a linguagem do coração é a imagem. Quando bem escolhida, a imagem possui um poder mágico: ela encanta, fascina, seduz. Quando falamos “imagens” que tocam as massas, estamos nos referindo à: 1) símbolos que evocam valores profundos como a cruz, bandeiras, etc; 2) analogias e comparações como parábolas. Aí funciona a lógica da associação, e não a do encadeamento teórico; 3) exemplos com ilustrações de casos concretos e descrições do cotidiano; 4) gestos que comovem as massas, como abraços, beijar o chão. Para as massas, as palavras funcionam quando ligadas à imagem. Aí a linguagem se torna eficaz e mobilizadora.
         Outra regra de ouro na linguagem com as massas é falar das coisas de modo simples. Fugir do complicado e difícil. Deixar de lado os detalhes. Isso não significa repetir banalidades. Estamos falando de simplicidade como o tratamento das coisas essenciais, vitais, nucleares. Quando possível deve-se usar a língua do povo, suas palavras, expressões e referências. Só assim a linguagem passa e cria uma sintonia inconsciente com a massa. A boa simplificação consiste em encontrar o núcleo essencial e dizê-lo numa fórmula simples e eficaz. É fruto de um processo de concentração no essencial, na medida do possível buscando fazer referências à própria experiência concreta das massas.
         Estas são algumas coisas que temos que ter em mente quando trabalhamos com as massas. Isso é crucial pois a principal tarefa de qualquer revolucionário hoje é trabalhar na base das classes populares da sociedade brasileira, vivenciando e contribuindo para sistematizar suas pequenas experiências de luta, elevando sua consciência de classe. Esse processo não é imediato. É uma missão estratégica, de longo prazo, orientando essas classes no momento que decidirem lutar. 
As classes populares no Brasil ainda necessitam de água, luz, esgoto, moradia, educação, saúde e infra-estrutura e estão colocando-se em luta para socializar a riqueza.  A combinação e unidade entre esses sujeitos, demandas e ações tem seu próprio ritmo e mobilização. Nosso dever é saber transformar suas reivindicações em ações massivas, independentes do governo e seus correligionários. Isso só surgirá, entretanto, se retomarmos a velha lição de organização junto à base popular, em seu dia a dia, em lutas diárias e miúdas. Não existem atalhos cujas cúpulas poderiam encaminhar para avançar na luta pelo socialismo. A única forma de os socialistas ganharem espaço na atual situação na luta de classes é dirigindo a luta imediata, cotidiana, por melhores condições de vida da classe trabalhadora. Pessoas insensíveis a estas lutas nunca serão aceitos para dirigir uma luta maior, por outra sociedade. E é nesta luta que os trabalhadores ganham consciência e desenvolvem suas habilidades organizativas e políticas. Se não for por este meio, quando se tornar mais claro os delineamentos da luta de classes e emergir uma generalização da luta de massas, restará apenas o papel dos espectadores debatendo traições em reuniões de “direção” para esconder seu isolamento elitista.
É evidente que não haverá revolução no Brasil sem que, em primeiro lugar, haja uma retomada da luta de massas. Sem luta de massas e sem fortes organizações da classe, não apenas torna-se pouco provável que ocorra uma crise de dominação como torna-se praticamente impossível transformar esta crise de dominação numa situação revolucionária. É a generalização da luta de massas que cria as condições para a disputa do poder. Somente as grandes mobilizações, o estímulo a todas as formas de luta de massa por necessidades imediatas e o trabalho de base podem alterar nossa situação diante da luta de classes e apontar para a emancipação popular. Para liquidar os inimigos do povo, precisamos retificar o trabalho com as massas. Uma vez que o estilo de trabalho seja totalmente correto, todo o povo aprenderá com nosso exemplo. É um trabalho árduo, mas que valerá a pena.

2 comentários:

Alceu disse...

E isso ai meu amigo suas análises estão a cada dia melhores. Os dois últimos textos são de uma visão e sensibilidade impar. Continue assim, que suas análises estão se tornado uma grande fonte de reflexão.
Obs: pô, quem diria, citação até da bíblia.

José Marcelo Rigoni disse...

Quanta bobagem...